O Lavador de Pedra
Manoel de Barros
A gente morava no patrimônio de Pedra Lisa. Pedra Lisa era um arruado de 13 casas e o rio por detrás. Pelo arruado passavam comitivas de boiadeiros e muitos andarilhos. Meu avô botou uma Venda no arruado. Vendia toucinho, freios, arroz, rapadura e tais. Os mantimentos que os boiadeiros compravam de passagem. Atrás da Venda estava o rio. E uma pedra que aflorava no meio do rio. Meu avô, de tardezinha, ia lavar a pedra onde as garças pousavam e cacaravam. Na pedra não crescia nem musgo. Porque o cuspe das garças tem um ácido que mata no nascedouro qualquer espécie de planta. Meu avô ganhou o desnome de Lavador de Pedra. Porque toda tarde ele ia lavar aquela pedra.
A Venda ficou no tempo abandonada. Que nem uma cama ficasse abandonada. É que os boiadeiros agora faziam atalhos por outras estradas. A Venda por isso ficou no abandono de morrer. Pelo arruado só passavam agora os andarilhos. E os andarilhos paravam sempre para uma prosa com o meu avô. E para dividir a vianda que a mãe mandava para ele. Agora o avô morava na porta da Venda, debaixo de um pé de jatobá. Dali ele via os meninos rodando arcos de barril ao modo que bicicleta. Via os meninos em cavalo de pau correndo ao modo que montados
Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003.
Por parte de pai
Bartolomeu Campos Queirós
Em casa de meu pai, todas as noites, eu resmungava pedindo água. Era uma sede com hora marcada. Minha mãe já não se movia muito, entre dores, passava as noites em claro, controlando gemidos. Meu pai se levantava e ia até minha cama. Fechava a mão em forma de copo, levantava a minha cabeça com a outra, e fazia gute, gute. Eu bebia sua mentira e dormia feliz. Não, meu pai não economizava água. Ele era mão-aberta e nunca chegava, agora em raras viagens, sem pequenos presentes. Ele os esquecia sobre a mesa e ficava distraído, esperando elogios.
Engraçado, na casa do meu avô eu não sentia sede, nem de madrugada, quando os galos me acordavam junto com a manhã e eu ficava esperando o cheiro do café me tirar da cama. No meio da noite, se a tempestade rompia o silêncio do escuro, meu avô vinha até meu quarto. Abria a porta de manso, para verificar se a chuva do vento não estava entrando na janela, e benzia meus sonhos. Então, com a mão muito branda, arrumava meus lençóis e deixava um recado em minha testa, uma certa bênção leve como os gatos. Também meu avô era econômico nos carinhos e tímido nos gestos. Nessa hora, quando os raios esfaqueavam o resto da noite, enrolado em meus pensamentos eu me esforçava para perdoar meu avô por não amar os gatos.
Por parte de pai. Belo Horizonte: RHJ, 1995.
Nenhum comentário:
Postar um comentário